21 agosto 2014

O Negócio da Família.

Bill acordou sem ar e banhado em um suor frio. Virou-se de lado, tentando recuperar o maldito fôlego e, por um instante, achou que morreria alí mesmo, deitado naquela cama velha. Seria até cômico se morresse ali, pensou, enquanto quase tossia os pulmões fora.

Bill trabalhava de guarda e também de coveiro no cemitério municipal de uma cidadezinha no interior do estado de Mississipi e sua residência era ali mesmo, no serviço. Não tinha família e nunca fez questão de ter. Foi criado em um orfanato quando criança. Já a alguns anos, morava em um cazebre minúsculo, bem ao lado dos portões do cemitério em que trabalhava. Pagavam-lhe uma miséria, mas pelo menos deixavam que ele morasse ali sem cobrar aluguel. Não havia energia elétrica na casa, mas ele pouco se importava; usava velas ou um velho lampião de querosene quando a noite chegava sem Lua e a névoa era densa demais. Não era a vida que alguém iria querer para sí, mas Bill não ligava, já havia passado dos sessenta anos, não tinha filhos, esposa e nem parentes dos quais tivesse conhecimento. Seus amigos mais chegados, por assim dizer, eram os próprios mortos ali enterrados e o antigo rádio de pilha que escutava o tempo todo, dia e noite.

Bill levantou-se da cama tossindo e acendeu um cigarro. Deu três longas tragadas, observando a fumaça desaparecer em meio a claridade da janela; ele então largou o cigarro no cinzeiro e foi até o banheiro se lavar. Depois de algum esforço, conseguiu cuspir um catarro sujo esverdeado na pia e passou água corrente no rosto. O pequeno espelho acima mostrava um velho cansado, com uma expressão carrancuda; a água escorria-lhe pela enxarcada barba grossa e grisalha que quase lhe cobria o rosto todo, e seus olhos estavam com olheiras fundas e enrugadas, resultado das noites mal dormidas. Tem sido assim a mais de uma semana, pois toda noite agora ele tinha uma merda de pesadelo. Bill não acreditava em assombração, não tinha medo dessas coisas, pois se tivesse, não estaria trabalhando no mesmo ramo a mais de quarenta e cinco anos, e nesse tempo todo, nunca viu uma aparição de fantasma, nem de demônio, nem de anjo, nem de porcaria nenhuma nos mais de doze cemitérios em que já esteve como coveiro. Mas havia algo nesses pesadelos... Eles começaram devagar e não chegavam a atrapalhar-lhe o sono. No inicio, Bill caminhava pelo cemitério em meio a uma densa névoa diurna, atraido por uma voz estranha que o guiava. Ele então enxergava uma silhueta ao longe e, essa silhueta, esse ''homem'', ou seja lá oque fosse, tinha uma pá na mão e não parava de cavar. No inicio os pesadelos se resumiam a isso e Bill não acordava assustado, ele apenas acordava intrigado por ter tido novamente o mesmo sonho. Com o passar dos dias, os pesadelos foram então mudando. No oitavo dia, Bill caminhava pelo cemitério em meio a uma densa névoa, dessa vez ao anoitecer. Ele era atraído por uma voz suave mas maliciosa e, escondidas entre a névoa, haviam diversas silhuetas que o observavam. Bill não conseguia enxerga-los, mas eles estavam alí, acompanhando cada um de seus passos, até ele avistar a já conhecida figura que cavava continuamente. A cada dia Bill chegava mais perto dessa figura e, nos ultimos dias, ele tem conseguido avista-la de forma mais nítida. Tratava-se de um homem vestindo um chapéu de palha e um casaco escuro surrado que quase tocava o chão. Os dedos que seguravam a pá eram negros, finos e compridos. A certa altura, esse homem parava de cavar e cumprimentava Bill com um sorriso: ''Olá Bill...'', ele falava e então desaparecia, ressurgindo nas costas de Bill e colocando a mão no seu ombro. Ele então aproximava o rosto e susurrava alguma coisa que Bill não compreendia. Depois disso, Bill acordava suado e tenso, as vezes até sentia o cheiro fétido do hálito daquele ser impregnando o ar; ou seria o seu próprio hálito que estava cheirando assim tão mal?

No nono dia de pesadelo, Bill acordou assustado e irritado. O seu ombro direito - exatamente o ombro que era tocado por aquele ser estranho dos pesadelos - possuia marcas avermelhadas de dedos.

 - Que merda é essa meu Deus? - Disse, enquanto observava as marcas no espelho. Eram cinco marcas avermelhadas e compridas que ardiam como queimaduras. Olhando assim não pareciam dedos, pois eram longos e finos demais para serem dedos, mas...

- Devo estar ficando louco, já era hora, já estou velho e cansado. - Disse, vasculhando os bolsos a procura de seu masso de cigarros, e decepcionando-se ao encontrar vazio o seu ultimo maço. Bill resmungou alguns palavrões, deu as costas, colocou seu chápeu, pegou sua carteira, e entrou na caminhoneta. As chaves já estavam na ignição, então ligou o motor e partiu em direção a cidade. O bar mais próximo ficava a dez minutos dali.




Ao chegar, estacionou a caminhonete, puxou a chave e desceu. Havia pouco movimento. Bill puxou um pigarro, cuspiu-o para o lado e atravessou a rua sem pressa. Entrou em um bar pequeno, uma espécie de bolicho. Pegou o costume de comprar sempre ali, pois era mais perto, e também porque era um dos unicos onde ainda podia-se encontrar aqueles cigarros baratos.

- Boa tarde senhor, em que posso lhe ajudar? - Perguntou um rapaz adolescente, provavelmente o filho do dono do estabelecimento.
- Eu quero quatro maços ''daquele'' cigarro.
- Sim senhor.

Bill pagou pelos cigarros e saiu em seguida, parando no meio fio da calçada para fumar. Abriu um maço, retirou um cigarro e o acendeu. Enquanto fumava, começou a reparar em sua caminhonete e no quanto ela estava mal cuidada, velha, suja, ''Assim como você'', pensou e tentou rir, mas foi impedido pela tosse pigarrenta que a anos o perseguia. Alguns minutos depois, Bill largou o toco de cigarro na calçada e retirou outro para fumar, mas parou no meio da rua quando percebeu que estava sem fogo.

- Porcaria, vou precisar de fósforos.

Retirou o cigarro da boca e deu meia volta.

- Escuta garoto, me veja duas caixas de fósforos. - Disse ao entrar novamente no bar. Ninguém respondeu e demorou um tempo até Bill perceber que o Bolicho estava vazio. Ele deu uma olhada mais ao fundo.

- Garoto!?

Bill escorou-se no balcão e começou a bater os dedos impacientemente contra o mesmo, numa tentativa de fazer-se ouvir sem que tivesse que chamar de novo. Ele olhou ao redor, mas ninguém aparecia para atende-lo.

''Onde foi que aquele moleque idiota se enfiou?''

Bill então escutou um pequeno barulho vindo da porta atrás do balcão.

- Escuta, garoto, se estiver muito ocupado ai, eu vou pegar duas caixas de fósforos e largar o dinheiro aqui em cima, algum problema nisso!?

Não houve resposta, então Bill espixou-se para pegar as caixas de fósforos, mas, antes que o fizesse, escutou mais um barulho que julgou estranho. Não que ele se importasse, mas decidiu contornar o balcão e ir até lá mesmo assim. A porta estava semi aberta. Bill empurrou-a e entrou.

- Esta tudo bem ai, garoto? Eu preciso de... Mas o que...?

Bill entrou em um corredor branco e frio com portas metalicas. Haviam muitas vozes e uma delas começou a chamar seu nome. Dois homens que pareciam enfermeiros, apareceram empurrando uma maca no fim do corredor.

- Que diabos, isso aqui é um hospital?

Bill continuou caminhando, até chegar ao fim daquele corredor, onde a voz continuava o chamando em pequenos ecos. O corredor terminava rente a uma porta dupla vai-e-vem, e se dividia a direita e a esquerda. Ele virou-se a direita. Havia alguém caminhando em sua direção e Bill tinha absoluta certeza de que tratava-se do homem que sempre o atendia naquele bolicho. Nada fazia o menor sentido naquilo tudo, nada mesmo. Bill caminhou na direção do homem e o chamou, mas ele passou reto sem nem mesmo olhar para Bill.

- Ei você!... Mas o que...?

Bill olhou o homem que se afastava sem olhar para trás.

- Espera...

''Desgraçado, quem ele pensa que é?''

O homem dobrou a esquerda e desapareceu. Haviam várias portas naquele corredor e uma voz voltou a chamar o nome de Bill; ela parecia vir da próxima porta a esquerda. Ele se aproximou e quase foi atropelado por dois enfermeiros que abriram a porta e sairam as pressas, sem nem olha-lo.

''Eu sou invisível por acaso, seus filhos de uma puta!?'', pensou, querendo falar em voz alta. Bill empurrou a porta e deparou-se com um quarto de hospital. Havia um homem deitado, respirando por aparelhos. Um médico e uma enfermeira estavam ao lado dele e o médico tinha um desfilibrador em suas mãos. A esquerda de Bill, em um canto mais ao fundo do quarto, estava aquele mesmo homem dos pesadelos, mas dessa vez ele estava sem chapéu, expondo uma cabeça humanoide sem cabelos, olhos, nariz ou orelhas, apenas uma boca enorme e sem lábios. Sua pele era escura e ressecada como uma uva passa. Ele olhou para Bill e sorriu com aquela enorme boca repleta de dentes amarelados e escuros. Bill sentiu um aperto no peito e deu alguns passos para trás, agarrando o tórax com a mão esquerda; em seguida sentiu outro aperto e chamou pelo médico, mas tanto ele quanto a enfermeira pareciam estar em câmera lenta e não o escutavam. A criatura humanóide levantou-se e começou a se aproximar. Bill não conseguia se mover, estava estático, agarrando o tórax com as duas mãos. Quando chegou perto o suficiente, a criatura olhou-o fixamente; ela não tinha olhos, mas Bill sentiu que ela olhava-o diretamente nos olhos.

- Por que resistes, Bill? Já não há mais oque fazer, apenas deixe-me leva-lo. - disse a criatura, tocando seu ombro e virando o rosto em direção ao corpo que os médicos tentavam reanimar. Bill acompanhou e viu que o corpo deitado era o seu próprio. - Consegue sentir esse cheiro, Bill? - disse, inspirando o ar lentamente - Este é o agradável cheiro da morte. Seu corpo está morrendo aos poucos e estará completamente morto dentro de alguns instantes. Poderia já estar morto agora, mas você é teimoso, não é mesmo?

Bill olhou a criatura, seu peito já não doía.

- O que... Como eu vim parar aqui? O que está acontecendo?
- É natural que você não lembre... Você teve uma parada respiratória enquanto tentava comprar fósforos para acender seus preciosos cigarros.

Bill ficou em silêncio. Ele tinha perguntas, mas que aos poucos foram sendo respondidas em sua própria mente. Ao lado, o monitor cardiaco tocava o som da falência, enquanto o médico anunciava a hora da morte.

- Tudo bem, eu já devia ter imaginado. E o que acontece agora?

A criatura sorriu maliciosamente.

- Agora você vem comigo.
- E você vai me levar onde? Eu imaginava a vida após a morte de uma maneira diferente. A luz branca e toda aquela baboseira...
- Preciso que feche os olhos, Bill.
- Por que?
- Apenas faça.

Bill encarou-a um instante.

- Quem é... O que é você, afinal? - perguntou Bill, fechando então os olhos.
- Hoje em dia eu não sei exatamente oque eu sou, pois não há uma definição. Eu apenas sei qual é o meu serviço.
- E qual é ele?
- O negócio da família, você já irá descobrir.

Bill sentiu um enorme desespero e abriu os olhos imediatamente, porém, jamais voltou a enxergar.



4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Ele acordou tossindo quase morrendo e para aliviar pegou um cigarro?Carai este cara é um genio

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Isso se chama vicio, parceiro. É igual um bêbado que vai no bar beber um pouco mais pra ver se a vida melhora.

      Excluir
    2. Nenhum pouco esperto da parte do senhor Bill mesmo, kkkk' Mas meu pai trabalha em um bar e, acredite, ele aqui tem amigos e vizinhos que já estão em uma situação bem pior e ainda assim compram de três a quatro maços de cigarro por dia.

      Excluir